O projecto Biblioteca Virtual de la Poesía Épica Burlesca Portuguesa. Catalogación y corpus digital de los poemas ‘herói-cómicos’ en Portugal y Brasil (siglos XVIII-XIX)1 incide sobre um conjunto de textos ainda hoje escassamente conhecido em toda a sua expressão e amplitude. Os textos que agregamos, nas histórias da literatura portuguesa e brasileira, sob a etiqueta «poesia herói-cómica» – designação também possível no âmbito da literatura em língua espanholae, mas mais frequentemente referida como «poesía épica burlesca» (heroï-comique, fr.; mock epic, ing.) –, refractam as tensões que atravessam a emergência e consolidação desta esfera pública literária na passagem da pré-modernidade à modernidade. Género que ganha uma certa autonomía estética ao longo da segunda metade do século XVIII, contudo, há que assinalar a produtividade desta forma literária, em regime, digamos, tardio, ao longo de todo o século XIX português.
Nesta centúria, é possível mais de uma centena de textos que, cobrindo, no entanto, uma variada fenomenologia discursiva e mesmo formal, ampliam enormemente o corpus. É uma valência tardia na medida em que a formalização do género épico burlesco se inscreve no campo da estética e cultura neoclássica. Se o poema «herói-cómico» cumpriu uma função durante o século XIX, ele propiciou um discurso «literário» de crítica e costumes políticos. Ou seja, algo como um realismo de cunho burguês com autonomia crítica que só encontraria uma forma estética no romance realista-naturalista.
O corpus de setecentos inscreve-se também no círculo da sátira ilustrada, que em outra descrição possível para o caso português, coincide com a chamada ilustração pombalina, aludindo ao período reformista efervescente promovido pelo Ministro do Reino Marquês de Pombal, etapa que vai, aproximadamente, desde 1759 até 1772, dando continuidade, no entanto, a «doutrina» anterior: a expulsão dos jesuítas (1759), a fundação do Real Colégio dos Nobres (1761, 1766), a criação do Real Mesa Censória (1768) e da Junta da Providência Literária (1770), a reformas dos estudos menores e universitários em 1772. Acrescente-se, além disso, a formação e proliferação de cenáculos eruditos, como é o caso, importante para a fundamentação da ideologia estética neoclássica, da Arcádia Ulissoponense, um ano após o terramoto de 1755.
Todos estes são factos determinantes na história cultural da segunda metade do século XVIII. Factos que permitem situar a crítica satírica que dá unidade ao corpus de poemas «herói-cómicos» deste século. Grosso modo, os seus autores são indivíduos oriundos da classe burguesa e que fazem de uma cultura ainda herdeira das formas da cultura aristocrática o seu dispositivo de ascese social. Muitos deles «académicos», isto é, imaginando-se pastores in Arcadia, e legislando o mundo moral do «bom gosto» a partir desse lugar imaginário. Literatura de juristas, desembargadores filhos da burguesia, funcionários do crescente aparato burocrático do despotismo esclarecido que reforçou a acção do Marquês de Pombal, e a acção dos pombalistas que lhe deram continuidade depois da sua queda em desgraça. O universo sócio-cultural arcádico onde os poemas «herói-cómicos» são forjados é um universo que torna contígua a cultura aristocrática progressivamente desfuncionalizada, e onde se vão impondo os valores de uma burguesia que ascende socialmente sob a centralização/estatização do Poder da res publica.
Assim, a Biblioteca Virtual de la Poesía Épica Burlesca Portuguesa. Catalogación y corpus digital de los poemas ‘herói-cómicos’ en Portugal y Brasil (siglos XVIII-XIX) leva a cabo a catalogação crítica da poesia cuja casuística foi marcada com o rótulo de «poema heróico-cómico». A representação dinâmica dessa poesia, em rigor ainda bastante desconhecida, num «repositório digital" é fundamental para objetivar o poder da sátira como mecanismo de inclusão/exclusão social na passagem do Antigo Regime para a chamada modernidade pós-liberal, da poesia herói-cómica como sátira. E isso é devido ao imenso peso específico que o julgamento tem no género, ou seja, a capacidade de julgar. No caso da poesia épica burlesca, o exercício desse julgamento sempre acontece no cenário público da Razão, plenamente consistente com a formação da esfera pública burguesa.
Por outras palavras, é neste espaço comunicativo da Razão universalmente compartilhado por poetas e leitores que está em jogo a performatividade deste importante género. Um caminho genológico datado, sem dúvida, nas margens do sistema de gêneros da modernidade. Trata-se de uma casuística textual cuja expressão e extensão patrimonial justifica um estudo sistemático na sede da universidade em Portugal e no Brasil - onde o próprio Machado de Assis experimentou com o género –, se exceptuarmos alguns estudos parciais mais recentes. A Biblioteca Virtual de la Épica Burlesca Portuguesa, neste sentido, objetiva a produção de um catálogo de base filológica, disponibilizando on line o «corpus de poemas herói-cómicos» num repositório digital baseado nos desenvolvimentos heurísticos e metodológicos da chamada «nova filologia».
De facto, a contribuição científica de um projeto delineado nestes termos supõe a potenciação do trabalho filológico pelo metameio digital. A possibilidade de prosseguir esta investigação foi facilitada, sem dúvida, pelo livro de Alberto Pimentel, Poemas Herói-Cómicos Portugueses. (Verbêtes e Apostilas), Porto-Rio de Janeiro, Renascença Portuguesa-Anuário do Brasil, 1922. No início do século XX, Alberto Pimentel realizou a colação de informações sobre o ‘arquivo’ esquecido da poesia épica burlesca do séculos XVIII e XIX. O livro permitiu ter um guia para identificar a casuística textual que integra o corpus da poesia «herói-cómico», sua localização (instituições portuguesas e brasileiras, públicas e privadas) e alguns dados sobre os suportes materiais de circulação (manuscrito, impresso).
Apesar desse valor inegável, revelou-se, o volume de Pimentel, um trabalho sem o rigor crítico ou a metodologia científica necessária para o avanço do conhecimento pleno do corpus. Esta é a contribuição do presente projecto e grupo de pesquisa. A pesquisa desenvolveu as bases teórico-metodológicas de um trabalho crítico - unificando filologia e nova filologia, estudos literários e materialidades da literatura - cujos eixos estruturantes são: (i) a «poesia épica burlesca em língua portuguesa», (ii) «pesquisa em humanidades e corpora digitais» e (iii) estabelecimento dos «modelos do épico burlesco e da comunidade interliterária luso-brasileira».
Campos da BVPEBP e protocolo de descrição bibliográfica das entradas
O estabelecimento de ‘campos’ teve como corolário uma grelha básica que permanece aberta, contudo, de modo a que seja possível somar outros campos que se considere serem necessários, em função do processo acumulativo e desenvolvimento do trabalho de investigação. Estes campos de segmentação dos registos são, ainda, valores de pesquisa dos usuários da BVPHCP. O protocolo das entradas visou produzir uma representação o mais completa possível de cada uma das espécies bibliográficas. Cada entrada, por conseguinte, corresponde a um documento manuscrito ou impresso concreto, localizado num determinado acervo bibliográfico (cf. fig. 2). A descrição bibliográfica é vinculada a este documento.
Em quadro esquemático, os ‘campos’ da base de dados são os seguintes:
Título
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Página de rosto completa segundo o protocolo estabelecido
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Autor
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Apelido, Nome; Apelido, Nome + Nome, apelido; Anónimo
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Naturalidade
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Lugar de nascimento do autor ou autores
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Tipo de documento
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Manuscrito, impresso, cód. miscelâneo, etc.
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Impressor
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Nome, Apelido
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Lugar de edição
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Localidade onde foi impresso
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Datação
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Data precisa, intervalo cronológico ou s.d.
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Localização/cota
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Instituição ou instituições onde se encontra a espécie bibliográfica, com indicação da cota
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Género/subgénero
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Indicação da categoria genológica da obra
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Perfil temático
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Breve resumo do tema
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Palavras-chave
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Três palavras-chave em pt., es. e ing.
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Descrição física
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Descrição material do cód., ms., impresso segundo o protocolo estabelecido
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Particularidades materiais
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Particularidades físicas que possam singularizar a espécie bibliográfica
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Notas
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Arquivo digital (imagens jp., documentos pdf. ou word)
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Referências externas
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Elenco das menções na bibliografia de referência
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Observações
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Descrição do conteúdo da espécie bibliográfica
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Código na BV
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BVPEBP0000000001, 2, 3, etc.
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Estado
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Estado em que se encontra a elaboração da entrada: defintivo, provisório, em preparação
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Eis, por seu turno, a apresentação sistemática do protocolo das entradas:
- Disposição das entradas. A representação digital – a ficha digital – de cada entrada distingue duas secções: a. Informação principal; b. Informação complementaria. Na primeira secção, que tem uma «janela» própria a que se acede by default, são consignados os seguintes campos da forma das entradas: título, autor, naturalidade, … Por seu turno, na segunda secção, a que se acede a partir da secção a., contém os seguintes campos da forma das entradas: «Notas», «Observaciones», «Código de entrada». A entrada visa produzir um «retrato» claro e relativamente breve da referência, submetendo a clareza e a brevidade à necessidade de «singularizar» e «distinguir» as espécies bibliográficas umas das outras.
- Forma das entradas. Cada entrada integra XX campos de informação: título, autor, naturalidade, datação, etc. Na representação do nome do Autor, procede-se à consignação, em primeiro lugar, do apelido e depois dos restantes nomes. No caso de co-autorias, preceitua-se o mesmo critério para o nome do autor principal, seguido dos restantes autores, separados entre si por vírgulas, sendos que os seus nomes são representados respeitando a ordem normal dos constituintes. Os nomes consignados neste campo são actualizados para a ortografia actual. No caso de autorias anónimas, consigna-se no campo a palavra «Anónimo»; se se trata de um documento miscelâneo, o campo é preenchido com o vocábulo «Miscelânea». No campo do «Título» é inscrita a «página de rosto» do impresso ou do manuscrito. No campo da «Descrição física», de carácter técnico, transcreve-se a seguinte informação: formato do volume (in-4º, inº-8, etc., ou medidas em mm.); número de volumes; número de fl. ou fls. seguido de inum. ou inums.; espécies foliadas ou paginadas são descritas analizando secções numeradas e não numeradas, assinalando os fólios ou páginas em branco. Esta descrição técnica pode, caso seja pertinente, ser concluída com a descrição de particularidades que singularizam a espécie bibliográfica em causa.
No campo «Referencias externas» anota-se, mediante um sistema de siglas, as menções à espécie bibliográfica feitas no corpus catalográfico de referência. A ordem dos inventários, bibliografias, catálogos, será cronológica. Dispõe-se a sigla, seguida de vírgula, número de ordenação no catálogo, página ou páginas do catálogo (abrev. por p. ou pp.). Por seu turno, no campo «Localização/cota» inscreve-se a instituição ou instituições onde se localizam o exemplar ou os exemplares da espécie bibliográfica, seguida da respectiva cota. As referências são separadas por ponto-e-vírgula. A instituição é representada mediante uma sigla/abreviatura (por ex.: Biblioteca Nacional de Portugal = BNP; Biblioteca Nacional da Ajuda = Ajuda; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro = BNRJ, etc.). O campo «Observações» é habilitado para, facultativamente, fazer a descrição do conteúdo do documento: frontispício ou equivalente, primeiras palavras dos paratextos (prólogos, dedicatórias), primeiras e últimas palavras dos textos principais e secundários do texto, colofón. O conteúdo textual destes elementos é transcrito seguindo um critério diplomático.
Abreviaturas necessárias para a descrição bibliográfica 2
fl./fls. folha/folhas
fr. frente
grav. gravura
inum./inums. inumerada/inumeradas
num./nums. número ou numerada/números ou numeradas
p./pp. página/páginas
v./vv. verso/versos
vol./vols. volume/volumes
Siglas das bibliotecas e acervos visitados/mencionados3
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo
BA Biblioteca da Ajuda
BAC Biblioteca da Academia das Ciências
BBGJM Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin
BGUC Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
BNP Biblioteca Nacional, Lisboa
BNRJ Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
BPADB Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Braga
BPADE Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora
BPMP Biblioteca Pública e Municipal do Porto
BSG Biblioteca da Sociedade de Geografia
A fixação dos títulos das obras elencadas, dentro de objectivos e parâmetros fundamentalmente conservadores, é feita, ou i. em função dos seguintes critérios gerais de modernização que respeitam a integridade linguística do texto (Opção A), ou ii. em regime semi-diplomático (Opção B):
- Substituição dos grafemas que já não existem no actual sistema gráfico;
- Desdobramento de abreviaturas;
- Modernização da pontuação;
- Actualização do texto segundo as regras actuais da acentuação em espanhol, ou em português caso se justifique (cfr. até);
- Simplificação de vogais e consoantes dobradas, exceptuando–se, como é óbvio, o caso do grafema – ll – do espanhol, em casos como ellos ou allegando;
- Actualização de grafias etimológicas ou pseudo–etimológicas como em puncto ou magnifiesto;
- Não introdução de hifenação;
- Regularização do uso das grafias i, j, u e v. As formas do ms. desconsertauan, jusgauan e auian, contudo, são grafadas, respectivamente desconcertavan, juzgavan e havían (em espanhol de hoje teríamos –aban e –abían), por poder tratar-se de lusismos fonéticos;
- Substituição & por y;
- Regularização do emprego de h segundo o uso moderno;
- Modernização do uso de g e j;
- Regularização do uso de maiúsculas e minúsculas segundo critérios actuais;
- Colocação entre [ ] das palavras ou letras acrescentadas ao texto original.
1Biblioteca virtual de la épica burlesca portuguesa. Catalogación y corpus digital de los poemas «herói-cómicos» en Portugal y Brasil (siglos XVIII-XIX). FFI2015-64108. Programa Estatal de Fomento de la Investigación Científica y Técnica de Excelencia · MINECO.
2 Não se trata de uma lista exaustiva.
3 Como no caso anterior, este conjunto de formas abreviadas de referência não é exaustivo.
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